Hoje, rolando o feed do LinkedIn – aquele teatro da produtividade tóxica que somos todos meio que obrigados a frequentar –, me deparei com uma postagem que era a síntese perfeita do horror corporativo contemporâneo. Era cruel, desumana e, acima de tudo, desonesta. Com um tom de deboche, o autor culpava o trabalhador demitido pela sua própria desgraça. A "brincadeira" era mais ou menos assim:
"Você é um mega profissional de tech, [...] que resolve todos os pepinos. O problema: só meia dúzia de pessoas sabe disso. [...] Um dia, você toma um pé na b., ops, layoff. Preenche mil cadastros na Golpy, só pra receber: “Obrigada por se candidatar...”. Ai, meu Deus, e agora?? Calma! Volte a se posicionar aqui de forma estratégica"
Vamos parar um instante aqui. A naturalidade com que o texto trata o desemprego em massa (usando o eufemismo "layoff", que já foi sequestrado pelo mundo corporativo) e a precarização do trabalho é assustadora. A zombaria com a busca por recolocação, a normalização de se sujeitar a vagas PJ com obrigações de CLT (uma fraude à legislação trabalhista, vamos ser claros), tudo isso é apresentado como um cenário inevitável. A culpa, segundo o "guru", é sua por "não ser visto". A solução? Vender o peixe dele, claro.
A mágica da causalidade vazia
Onde a desonestidade intelectual realmente brilha é na lógica que o autor tenta vender. Ele cria um universo de fantasia onde a atividade no LinkedIn se converte magicamente em sucesso financeiro.
"Seu post tem 100 likes. Graças à repercussão, alguém te chamou e você fechou um contrato de 10k [...]"
"Um dia, um diretor que te segue há meses te chama para dar um curso. Vão te pagar 20k. Opa… aqueles 3000 likes (3 meses de conteúdo) valeram algo, heim?"
Casualidade que chama? Em que universo paralelo 100 likes se transformam, por regra, em R$10.000? Essa lógica é uma falácia perigosa. Ela ignora todas as variáveis do mundo real: marcadores sociais, privilégios, rede de contatos pré-existente, condições de mercado, sorte e, principalmente, a estrutura de poder que de fato rege as contratações. É um discurso sedutor porque é simples. E é simples porque é mentira.
As armas da retórica barata
Para não cairmos nesse tipo de cilada, é preciso entender as ferramentas que esses "vendedores de fumaça" utilizam. A postagem é um prato cheio de vieses cognitivos, bem descritos em livros como "A Arte de Pensar Claramente" de Rolf Dobelli. Perceba as táticas:
A autoridade de papelão: O autor se posiciona como especialista, talvez ostentando um selo de "Top Voice" ou algo do tipo. Essa suposta autoridade nos desarma. Passamos a acreditar que a pessoa sabe o que diz, quando, na verdade, a "autoridade" em redes sociais é frequentemente medida por engajamento, não por rigor ou veracidade. Desconfie sempre de quem se apoia mais em títulos do que em evidências.
O viés de confirmação e resultado: O autor usa exemplos fictícios que confirmam sua tese ("3000 likes viraram 20k"). Ele só mostra o suposto sucesso, ignorando os milhares de casos em que o mesmo esforço não gerou absolutamente nada. O resultado (o contrato de 20k) é usado para justificar o meio, sem provar que o meio é a causa real do resultado.
Vozes da cabeça: E é exatamente aqui que a coisa fica mais insidiosa. Parte do conteúdo que encontramos no LinkedIn não passa da reprodução acrítica de um senso comum que ecoa no vácuo da validação social, sem qualquer ancoragem em dados, pesquisas ou referências bibliográficas. Se a plataforma se propõe a ser um ambiente profissional, o mínimo que se espera dos seus conteúdos é seriedade e profissionalismo. Apresentar uma correlação direta entre curtidas e contratos, sem um único estudo de caso verificável, é o equivalente a um engenheiro projetar uma ponte com base em intuição. Isso não é estratégia, é achismo disfarçado de consultoria.
Conclusão: Consciência de classe, não gurus de LinkedIn
Eu não gosto do LinkedIn. Acho que é a mais cruel das redes sociais, pois atua diretamente na nossa subsistência e se tornou uma ferramenta de disciplinamento ideológico. Ela nos ensina a performar gratidão por demissões, a romantizar a exaustão e, como no exemplo, a zombar da vulnerabilidade alheia.
A lição aqui não é apenas "desconfie de promessas fáceis". A questão é mais profunda. Precisamos estar atentos a qualquer discurso que simplifica realidades complexas, que coloca o indivíduo como o único arquiteto de seu destino e ignora as forças sistêmicas que nos esmagam. Esses discursos servem para nos manter isolados, competindo uns com os outros em um jogo de "marca pessoal", enquanto o sistema que gera o desemprego e a precarização segue intacto.
Não confie em quem diz que a culpa do seu fracasso (ou a causa do seu sucesso) é exclusivamente sua. A realidade é muito mais complexa. Precisamos nos organizar, dialogar e construir saídas coletivas, não cair no papo de salvadores individuais que, no fim das contas, só querem vender o próximo curso. Para se proteger, busque dados, estude e, acima de tudo, converse com seus pares. A nossa força não está no número de likes, mas na nossa capacidade de nos enxergarmos como uma classe.
texto publicado em 06/02/2024