Em 1994, quando a internet ainda engatinhava, uma tecnologia simples foi criada para resolver um problema irritante: a falta de memória dos sites. Eram os cookies. A ideia era ótima: pequenos arquivos de texto armazenados no seu navegador que permitiam que um site "lembrasse" de você.
Graças a eles, você não precisa digitar seu login e senha toda vez que acessa um site. É por causa deles que um site lembra que você prefere o modo escuro. Em sua essência, os cookies foram criados para agilizar, facilitar e melhorar nossa experiência online. Uma promessa de uma web mais inteligente e amigável. Mas essa promessa não durou muito.
A Virada: O Nascimento do Capitalismo de Vigilância
Com a explosão do e-commerce e, principalmente, das redes sociais, a função dos cookies foi pervertida. Empresas perceberam que esses pequenos arquivos poderiam ser usados não apenas para lembrar preferências, mas para rastrear cada passo nosso pela internet.
É aqui que nascem os cookies de terceiros. Sabe quando você vê um anúncio de uma furadeira em um portal de notícias, minutos depois de ter assistido a um vídeo sobre marcenaria no YouTube? São eles em ação. Esses cookies criam verdadeiros mapas da nossa atividade online, registrando nossos interesses, medos, desejos e comportamentos.
Deixamos de ser apenas usuários para nos tornarmos o produto. Nossos dados, nossa atenção e nossa psicologia se tornaram a mercadoria mais valiosa de um novo modelo de negócio: o Capitalismo de Vigilância. Termo popularizado por Shoshana Zuboff. E os cookies se tornaram a principal ferramenta de extração desse valor.
O Despertar Regulatório
Diante dessa vigilância massiva e invasiva, a sociedade, na última década, começou a reagir. Por aqui, a resposta veio na forma de algumas, hoje tímidas, regulações como o Marco Civil da Internet e da LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados). Essas leis buscam proteger "os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade", reconhecendo que nossos dados são uma extensão da nossa identidade.
A LGPD e outras leis semelhantes, como a GDPR na Europa, forçaram as empresas a, no mínimo, pedirem nosso consentimento. É por isso que hoje somos bombardeados com aqueles banners de "Aceitar cookies". Eles são o sintoma visível da confiança que foi quebrada. São um lembrete constante de que, para navegar na web, precisamos primeiro nos defender dela. É também por isso que informo sobre o uso de cookies aqui no rodapé: mesmo sem querer, as ferramentas que usamos podem fazer essa coleta.
Conclusão: O Fim dos Cookies? Uma Falsa Esperança.
Em 2022, a Google anunciou o que parecia ser uma vitória para a privacidade: o fim dos cookies de terceiros no Chrome. Em teoria, isso impediria que o Facebook, por exemplo, nos rastreasse fora de sua própria plataforma. Navegadores como Firefox e Brave já fazem isso há anos, mas com a dominância do Chrome, a mudança seria enorme.
Por um momento, podemos sentir um alívio. Mas a Google não é uma ONG de caridade; é a maior empresa de publicidade do mundo. O fim dos cookies de terceiros é menos um ato de benevolência e mais uma jogada de mestre para consolidar seu próprio poder.
Ao eliminar a ferramenta que seus concorrentes usam, a Google fortalece seu próprio monopólio de dados, coletados diretamente através do navegador, do buscador, do Android e de dezenas de outros serviços. Eles não precisam mais dos cookies de terceiros, pois já são donos do castelo. Estão apenas puxando a ponte levadiça para os outros não entrarem.
A verdade é que a privacidade não será um presente concedido pelas Big Techs. Ela terá que ser conquistada através de muita luta exigindo legislação forte, fiscalização e da nossa própria escolha por tecnologias e plataformas que respeitem o usuário. O fim dos cookies de terceiros pode ser o fim de uma era de rastreamento, mas pode ser apenas o começo de outra, ainda mais centralizada e opaca.
texto publicado em 22/11/2023